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O meu cancro

O meu cancro

Este ano começou a querer acabar comigo

Este ano que está prestes a findar começou mal. Foi-me diagnosticado um cancro no cólon.

A marcação rápida da cirurgia e o facto desta ter corrido bem terão evitado males maiores.

Depois foram seis meses de quimioterapia. Não foram fáceis, mas perante o menú do que poderia acontecer, que me apresentaram, até correu bem porque os inúmeros possíveis efeitos secundários não se fizeram sentir e os que se manifestararm aguentei-os sem sofrimento por aí além. 

Este ano, por isso (e não só, mas essas são contas d'outro rosário...) não foi bom. Até porque preocupou muita gente que me é querida e perturbou, por vezes, algumas relações importantes na minha vida.

Mas continuo VIVO e, até ver, sem resquícios da doença que me atingiu.

A todos os técnicos de Saúde que tão bem me assistiram, mais uma vez, o meu OBRIGADO!

À minha família que tanto me apoiou o meu OBRIGADO, também!

A todos os que se interessaram pelo meu estado ou que me manisfestaram a sua solidariedade, pelas mais diversas formas, o meu reconhecimento.

Estava tão diferente…

Quando há um mês me desloquei à unidade de quimioterapia para fazer a manutenção do cateter não reconheci um velo amigo que estava a fazer tratamento. Foi ele que meteu conversa comigo. Estava tão diferente que só quase no fim de uma relativamente longa conversa percebi quem ele era. E isso só aconteceu por uma referência que fez às funções que exerceu numa estrutura oficial. Foi então que olhando-o bem nos olhos vi quem ele era. Estava completamente diferente. Estava animado e confiante. Espero que tenha razão para isso e que o pior já tenha passado.

É verdade que cada caso é um caso, que cada um reage de acordo com um conjunto de especificidades, suas e da doença.

Ter sempre mantido o mesmo aspecto – como todos me referiam e eu verifiquei -, foi certamente uma boa ajuda à forma sempre optimista como enfrentei o meu cancro e lidei com todo o processo desde o diagnóstico, passando pela cirurgia e tratamento de quimioterapia até à “ordem de soltura”. Estou convencido que este já foi.

Ninguém podia descrever melhor uma sala de quimioterapia

O último abraço que me dás

Ali, na sala de quimioterapia, jamais escutei um gemido, jamais vi uma lágrima. Somente feições sérias, de uma seriedade que não topei em mais parte alguma, rostos com o mundo inteiro em cada prega, traços esculpidos a fogo na pele

Para Luís Costa

O lugar onde, até hoje, senti mais orgulho em ser pessoa foi o Serviço de Oncologia do Hospital de Santa Maria, onde a elegância dos doentes os transforma em reis. Numa das últimas vezes que lá fui encontrei um homem que conheço há muitos anos. Estava tão magro que demorei a perceber quem era. Disse-me

- Abrace-me porque é o último abraço que me dá

durante o abraço

- Tenho muita pena de não acabar a tese de doutoramento

e, ao afastarmo-nos, sorriu. Nunca vi um sorriso com tanta dor entre parêntesis, nunca imaginei que fosse tão bonito.

Com o meu corpo contra o dele veio-me à cabeça, instantâneo, o fragmento de um poema do meu amigo Alexandre O'Neill, que diz que apenas entre os homens, e por eles, vale a pena viver. E descobri-me cheio de respeito e amor. Um rapaz, de cerca de vinte anos, que fazia quimioterapia ao pé de mim, numa determinação tranquila:

- Estou aqui para lutar

e, por estranho que pareça, havia alegria em cada gesto seu. Achei nele o medo também, mais do que o medo, o terror e, ao mesmo tempo que o terror, a coragem e a esperança.

A extraordinária delicadeza e atenção dos médicos, dos enfermeiros, comoveu-me. Tropecei no desespero, no malestar físico, na presença da morte, na surpresa da dor, na horrível solidão da proximidade do fim, que se me afigura de uma injustiça intolerável. Não fomos feitos para isto, fomos feitos para a vida. O cabelo cresce-me de novo, acho-me, fisicamente, como antes, estou a acabar o livro e o meu pensamento desvia-se constantemente para a voz de um homem no meu ouvido

- Acabar a tese de doutoramento, acabar a tese de doutoramento, acabar a tese de doutoramento

porque não aceito a aceitação, porque não aceito a crueldade, porque não aceito que destruam companheiros. A rapariga com a peruca no braço da cadeira. O senhor que não olhava para ninguém, olhava para o vazio. Ali, na sala de quimioterapia, jamais escutei um gemido, jamais vi uma lágrima. Somente feições sérias, de uma seriedade que não topei em mais parte alguma, rostos com o mundo inteiro em cada prega, traços esculpidos a fogo na pele. Vi morrer gente quando era médico, vi morrer gente na guerra, e continuo sem compreender. Isso eu sei que não compreenderei. Que me espanta. Que me faz zangar. Abrace-me porque é o último abraço que me dá: é uma frase que se entenda, esta? Morreu há muito pouco tempo. Foda-se. Perdoem esta palavra mas é a única que me sai. Foda-se. Quando eu era pequeno ninguém morria. Porque carga de água se morre agora, pelo simples facto de eu ter crescido? Morra um homem fique fama, declaravam os contrabandistas da raia. Se tivermos sorte alguém se lembrará de nós com saudade. De mim ficarão os livros. E depois? Tolstoi, no seu diário: sou o melhor; e depois? E depois nada porque a fama é nada.

O que é muito mais do que nada são estas criaturas feridas, a recordação profundamente lancinante de uma peruca de mulher num braço de cadeira. Se eu estivesse ali sozinho, sem ninguém a ver-me, acariciava uma daquelas madeixas horas sem fim. No termo das sessões de quimioterapia as pessoas vão-se embora. Ao desaparecerem na porta penso: o que farão agora? E apetece-me ir com eles, impedir que lhes façam mal:

- Abrace-me porque talvez não seja o último abraço que me dá.

Ao M. foi. E pode afigurar-se estranho mas ainda o trago na pele. Durante quanto tempo vou ficar com ele tatuado? O lugar onde, até hoje, senti mais orgulho em ser pessoa foi o Serviço de Oncologia do Hospital de Santa Maria onde a dignidade dos escravos da doença os transforma em gigantes, onde só existem, nas palavras do Luís, Heróis.

Onde só existem Heróis. Não estou doente agora. Não sei se voltarei a estar. Se voltar a estar, embora não chegue aos calcanhares de herói algum, espero comportar-me como um homem. Oxalá o consiga. Como escreveu Torga o destino destina mas o resto é comigo. E é. Muito boa tarde a todos e as melhoras: é assim que se despedem no Serviço de Oncologia. Muito boa tarde a todos e até já, mesmo que seja o último abraço que damos.

António Lobo Antunes | 16:42 Quinta, 12 de Dezembro de 2013


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